31 de Janeiro 2008
Faltam menos de doze horas para atravessar a porta. Faltam menos de 8 para queimar o Entrudo - os "alguns restos" do pinheiro de Natal - e no fim de semana plantarei de novo no pinhal, junto do que resta do corpo da Tonta, os que ganharam raízes. Acontece isso muito, por aqui: há uma certa fertilidade no ar, os quatro elementos num equilíbrio tão firme que tudo enraíza. Acontecem milagres de morte e de vida e de ressurreição a todo o momento. O Salgueirinho está moribundo, mas a Ginjeira está a rebentar em flor. Está já aberto o portal para a Primavera.
As mimosas já rebentaram em cachos, apesar das noites de geada. Tenho-as na jarra da Entrada e fazem espirrar um pouco, mas cheiram bem.
A vida está a descristalizar. Os velhos já morreram quase todos. O inverno aéreo dissolve-se num sol mais claro e mais alto, numa aurora mais cheia de música.
Os pássaros entoam já Cantigas de Amor e Cantigas de Amigo, outros preparam os ninhos para os companheiros que vão chegando. Os que ficaram têm agora abundância de alimento.
Penélope voltou para os braços da mãe Gaia.
A lareira acende-se pela última vez com os restos do Natal. Outros restos estão num caixote, para outros Natais.
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Em 2007 foi Natal Verdadeiramente Natal. Foi uma Noite feliz, uma noite de Paz. Não se pode desejar que se mantenha o Natal eternamente, ainda que as sanefas sejam acesas todas as noites; como todos os dias, é mais um episódio de uma ilusão que mais tarde ou mais cedo se desvanece.
Tudo é ilusão, debaixo do Céu.
Ontem foi desmanchada a árvore de Natal, as sanefas arrancadas, como quem, com uma picareta, vai desmanchando o penedo em pequenas pedras, como quem, de enxada e mãos suaves - os calos desaparecem durante o inverno - , vai transformando a terra de dura em torrões macios.
É tempo de cultivo, de abrir espaços para que a vida possa renascer sem limites. Cada movimento da picareta, cada cavadela de enxada, é mais um passo para a Primavera. Há um tempo para tudo, porque tudo nada mais é do que nada, e sendo assim, levantemos âncora, não há terra à vista, mas os sinais surgirão, há sempre um corvo chamado Vicente.
"Senhora da Manhã Vitoriosa
E também do crepúsculo vencido
Ó Senhora da Noite Misteriosa
Por quem andas nas trevas confundido"
(Teixeira de Pascoaes)
É preciso aceitar que a Primavera vem quando está pronta, por mais que se marquem datas. Atravessado o Nigredo, há ainda um caminho até à Aurora, um longo momento de existência numa espécie de Limbo. Mas a Vida rebenta no Hemisfério Norte, e o nevoeiro desvanece-se na floresta, quando nos achamos, em plena manhã, numa clareira cheia de luz. É tanto o Silêncio que se ouvem as folhas despontar; outras, mais apressadas, como as Magnólias, florescem primeiro, o verde surge à medida que as flores secam: é um Outono ao contrário...
Somos árvores; e cada uma tem as suas próprias existências e exigências. Não se pode contrariar a Natureza, pretendendo que um cacto perdure no gelo, ou um feto-arbóreo nas areias quentes dos trópicos. Dentro de nós mesmos, temos a sabedoria de - ao menos - percebermos quando não é possível.
Nature contains Nature, and Nature Rejoices in Nature. A Primavera, decreto-o, começa Sábado - o dia da criação -, 2 de Fevereiro. Festa de Iemanjá.